11 de junho de 2014

A ÉTICA DO CORPO E SEUS DESDOBRAMENTOS NA VIDA CRISTÃ



 A ÉTICA DO CORPO E SEUS DESDOBRAMENTOS NA VIDA CRISTÃ
 INTRODUÇÃO:
           Se analisarmos as mudanças na sociedade a partir da segunda metade do século XX, iremos encontrar um avanço considerável nas áreas tecnológicas. Nesta perspectiva, encontraremos um mundo cada vez mais capitalista e que nos oferece todo tipo de conforto que jamais chegará aos lares da maior parte da população mundial.
          Este desenvolvimento se dá ao fato de vivermos em uma sociedade de consumo e também ao fomento deste mercado em nos fazer consumir cada vez mais e desenfreadamente. E neste cenário encontra-se a igreja de Cristo que agindo segundo o curso deste mundo também se envereda pelo consumo e sem fazer uma análise crítica sobre o assunto.
       Entretanto, apesar de vivenciarmos um avanço enorme nas áreas de tecnologia, presenciamos também uma desvalorização do corpo nos meios de comunicação sem precedentes. Se antes vivíamos uma repressão do corpo sob a égide da moral e da ordem, hoje acompanhamos outro extremo que é a descartabilidade do corpo. Diante de variadas incongruências na sociedade contemporânea, devemos nos perguntar de onde surgem tais problemas relacionados ao corpo? Como os cristãos podem efetivamente dar uma resposta salutar e equilibrada sobre o assunto? Estas e outras perguntas precisam ser analisadas com discernimento e equilíbrio para evitarmos os extremos e não cairmos nos fundamentalismos tão presentes nos nossos dias. Como cristãos precisamos compreender que o ser humano jamais deixará de dar uma resposta às questões que ele mesmo formula em decorrência de sua realidade, em decorrência do seu estar no mundo. Isto deve nos levar ao amadurecimento e não em insegurança.
      Se olharmos atentamente para a construção social e suas representações, iremos encontrar um corpo em constantes mudanças e vinculado ao campo da imagem, do desejo, do prazer, da liberdade, da repressão, ou seja, são inúmeras as possibilidades de descrevermos o corpo através das culturas. É sobre esse corpo em ética, que envolto num emaranhado de construções ideológicas, culturais, teológicas, antropológicas e simbólicas que iremos trilhar. O ponto de partida sempre será o referencial bíblico-teológico para compreendermos um pouco mais sobre este tema tão complexo e que precisa ser debatido nos círculos acadêmicos e vivenciado no corpo de Cristo.
I – A ÉTICA DO CORPO EM UMA SOCIEDADE DE CONSUMO
       No Brasil, a televisão e os demais meios de comunicação, através do discurso publicitário exercem grande pressão para que consumamos. A necessidade de adquirir mercadorias, objetos e serviços são no contexto atual produzida com grande força através da relação existente entre as mídias e a sociedade. 
           Segundo Pierre Bourdieu (1998), o conceito de campo poderia ser entendido como um espaço de produção de relações sociais objetivas, considerando as interações instituídas entre os atores envolvidos neste processo. De acordo com Bourdieu: 
“O campo de produção simbólica é um microcosmo da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nessa medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção” (p. 12). 

            Sendo assim, podemos observar que o consumismo tem gerado grandes catástrofes na sociedade. As consequências deste comportamento vão desde o crescimento vertiginoso da banalização da violência e a vulgarização do corpo como instrumento puramente hedonista. Muitos consomem drogas porque na sociedade da “produção imediata e de resultados”, é a alternativa que encontram para buscarem outro sentido de vida. Estamos vivendo sob a síndrome da poluição, da extinção, da escassez, da miséria, da fome, das grandes catástrofes, que de naturais não têm nada, mas são em grande parte, resultado da banalização da vida pelo ser humano em todas as suas representações.
          O homem e a mulher contemporâneos precisam deixar de se tornarem “as pessoas das conquistas e vitórias”, para sermos transformados nas pessoas das re-conquistas. Digo isto, com o intuito de resgatarmos o amor e o cuidado com a vida que se tem perdido gradativamente atualmente. Evidentemente que encontraremos coisas relevantes nesta sociedade de consumo. Por exemplo: os avanços da biologia e da medicina tem nos permitido salvar e possibilitar muitas esperanças em doenças que anteriormente não tinham cura. Na sociedade em estamos inseridos, tem-se perdido o sentido de coletividade em detrimento da individualidade que são orientadas pelos ditames do mercado. Se tivermos a mente de Cristo e discernimento para lermos o mundo com as lentes de Cristo, não deixaremos que os outros ditem as regras de mercado para nós.
     Na ética do Reino de Deus, o corpo precisa ser valorizado e cuidado com responsabilidade e para isto precisamos estar fundamentados nos princípios bíblicos. Desta forma, o corpo na perspectiva bíblica é compreendido com uma unidade constitutiva do ser humano onde ele se manifesta. Por outro lado, o corpo não pode ter uma primazia sobre o espírito. No mundo Antigo se valorizava somente o espírito e desprezava-se o corpo. Hoje, corremos o risco de ver o contrário acontecer. Há pessoas que se tornaram escravas do corpo. O consumismo exacerbado tem convencido as pessoas que o mais importante é ser bonito fisicamente, esbelto, magro. Muitos estão convencidos de que, se não estiverem de acordo com esses padrões, não serão felizes. Entretanto, Deus seria injusto se fizesse com que a felicidade dependesse da cor da pele, do biotipo do corpo, da ondulação do cabelo. O corpo não é um fim em si mesmo, mas um meio para nos expressarmos.
 II – UM DIÁLOGO ENTRE O CORPO E A TEOLOGIA CRISTÃ
         Numa abordagem bíblico-teológica, o corpo é o templo onde habita o Espírito de Deus (1 Co 6:19,20). Na visão Paulina embora o corpo seja mortal Deus lhe confere a vida por meio de seu Espírito, que nele habita (Rm 8,11). Precisamos fazer uma aproximação respeitosa e madura para que possamos compreender um pouco mais o corpo em sua dimensão mais abrangente, bem como uma reflexão sobre o que estamos fazendo com o corpo e qual o destino que estamos dando a ele em nossos dias.
        A doutrina cristã sempre valorizou o corpo humano por entender que ele é bom. Desde os primeiros séculos da era cristã, os Pais da Igreja tiveram de combater a doutrina maniqueísta, que considerava a existência de dois deuses: um do bem e outro do mal, sendo que tudo que era material era entendido como obra do deus mau. Dessa forma, o corpo, por ser matéria, era desprezado. Entretanto, muitos Pais da igreja devido à influência grega acabaram se tornando cativos a esta estrutura antropológica em que estavam inseridos. Eles assumiram a concepção “dual” do ser humano, a ponto de torná-la a versão oficial da antropologia cristã. Modificando os significados e as relações entre corpo e alma, o corpo veio a ser entendido como criação e imagem de Deus, e bem como lugar da encarnação de Deus, não como fonte do mal e destinado ao nada, mas como algo bom, destinado à ressurreição. Porém, é que ainda assim encontramos na história da igreja uma tensão nesta questão teológica até os dias de hoje.
        Para uma concepção adequada sobre a relação do corpo com a teologia, se faz necessário um aprofundamento nos textos sagrados para evitarmos o dualismo nas interpretações dos textos bíblicos que tratam do corpo. O grande equívoco da teologia cristã ao longo de sua história foi a de realizar sua chave hermenêutica numa perspectiva helênica e não judaica. Esta visão interpretativa gerou e ainda gera muita confusão no seio da igreja em diversos temas da fé cristã, mas principalmente sobre a antropologia bíblica.
         Porém, se encararmos a antropologia bíblica a partir da concepção teológica da encarnação, não teremos dificuldades na compreensão e nem na abordagem do corpo na cosmovisão cristã. O corpo é tão importante nas escrituras que o próprio filho de Deus assumiu a nossa carne e habitou entre nós. É através do nosso corpo que nos relacionamos com os outros e com toda a ordem criada. Não somos como máquinas que não tem sentimentos.
        Na pessoa humana o corpo é um reflexo da vida interior, tanto que expressa o cansaço do espírito, a depressão da alma ou a alegria de viver. Para o cristão, matéria e espírito são duas dimensões do ser. O homem todo é obra boa de Deus, é um ser racional que deve valorizar todas as atividades: físicas, racionais, psicológicas e espirituais. Na palavra de Deus também encontramos a grandeza do nosso corpo. Jesus disse aos apóstolos que “se alguém me ama, meu Pai o amará, viremos a ele e faremos nele nossa morada” (João 14,23).
          Segundo Libânio “o diálogo entre as diversas áreas do conhecimento, além de combater a arrogância, a prepotência e a hegemonia de determinada ciência como única possuidora da verdade, aumenta a percepção da comunidade científica sobre a vida em suas múltiplas e sutis interconexões e faz crescer a sensibilidade ética de defesa e promoção da vida, em todos os níveis da atividade humana”. (1999. p. 41-42)
Lancemos, portanto, um olhar sobre o corpo numa perspectiva mais ampla: como algo fundamental para a realização humana e para o sentido da própria existência. Que tenhamos na encarnação do Cristo um olhar holístico e não mais fragmentado do corpo em nossa teologia cristã.
III – O DESEJO DE DEUS PARA SAÚDE HUMANA
       Para início de conversa, precisamos entender que somos ensinados nas escrituras que devemos cuidar do nosso corpo e amá-lo. “Porque ninguém jamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e dela cuida” (Ef 5:29). Se o Espírito Santo vive dentro de nós, como de fato cremos, então devemos cuidar deste “templo” com o mesmo respeito e reverência com que os israelitas cuidavam do templo que Deus lhes mandou construir.
             Nas escrituras encontramos um cuidado de Deus para com seu povo em relação a saúde. Na torá identificamos diversas leis sobre alimentação, higiene e saúde. Principalmente no livro de Levíticos. Identificamos ali que Deus deseja que seus filhos e filhas cuidem não apenas do aspecto espiritual, mas também biopsicossocial, ou seja, de forma integral. Textos como: “Amado, desejo que te vá bem em todas as coisas, e que tenhas saúde, assim como bem vai a tua alma". (III João 2). Há uma infinidade de textos que apresentam um Deus que se preocupa com os seus e com a saúde do seu povo.
            Infelizmente no nosso meio evangélico, o ato de cuidar do corpo se limita apenas a algumas práticas comportamentais e de cunho moral somente. Ela se resume basicamente a não fumar e nem usar bebidas alcoólicas. Obviamente que tais práticas trazem malefícios para a saúde. Mas o cuidado com o corpo não pode se resumir apenas nisto. Pois, a visão da Bíblia em relação a isto é bem mais ampla e integral.          
            Soa estranho aqueles que querem execrar o corpo humano e num acesso de pseudo-espiritualidade, alegarem que o crente deve somente cuidar de sua alma. Certo é que o apóstolo Paulo afirmou: Porque o exercício corporal para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de vir” (1Tm 4.8). Mas o mesmo Paulo citou os esportes praticados no mundo greco-romano para ilustrar a vida cristã (1 Co 9.24-27). Paulo não disse em 1 Tm 4.8 de que o exercício corporal para nada aproveita, sempre há algum proveito para a saúde corporal o realizar atividades físicas com moderação e regularidade.
            A escritura diz: Portanto, quer comais, quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Co 10.31). O cuidar do corpo por meio da atividade física é algo que glorifica ao Senhor. Quando Paulo em Romanos 12.1 diz que devemos apresentar nossos corpos a Deus como sacrifício vivo, santo e agradável, não está falando de alguma espécie de substância espiritual. Ele está falando de algo material, tangível como bem deixa transparecer o termo grego soma. Seja um cristão autêntico, tenha qualidade de vida em Jesus não só para sua alma, mas também para seu corpo.


BIBLIOGRAFIA
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BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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SCHROER, Silvia. Simbolismo do corpo na Bíblia / Silvia Schroer e Thomas Staubli; (tradução Paulo Ferreira Valério). São Paulo: Paulinas, 2003. (Coleção Bíblia e História).
SUNG, Jung Mo. Conversando sobre ética e sociedade. 14ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.

Pr. Marco Antônio Carvalho

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