A ÉTICA DO CORPO E SEUS DESDOBRAMENTOS NA
VIDA CRISTÃ
INTRODUÇÃO:
Se analisarmos as mudanças na
sociedade a partir da segunda metade do século XX, iremos encontrar um avanço
considerável nas áreas tecnológicas. Nesta perspectiva, encontraremos um mundo
cada vez mais capitalista e que nos oferece todo tipo de conforto que jamais
chegará aos lares da maior parte da população mundial.
Este desenvolvimento se dá ao fato de vivermos
em uma sociedade de consumo e também ao fomento deste mercado em nos fazer consumir
cada vez mais e desenfreadamente. E neste cenário encontra-se a igreja de
Cristo que agindo segundo o curso deste mundo também se envereda pelo consumo e
sem fazer uma análise crítica sobre o assunto.
Entretanto, apesar de vivenciarmos
um avanço enorme nas áreas de tecnologia, presenciamos também uma
desvalorização do corpo nos meios de comunicação sem precedentes. Se antes
vivíamos uma repressão do corpo sob a égide da moral e da ordem, hoje
acompanhamos outro extremo que é a descartabilidade do corpo. Diante de
variadas incongruências na sociedade contemporânea, devemos nos perguntar de
onde surgem tais problemas relacionados ao corpo? Como os cristãos podem
efetivamente dar uma resposta salutar e equilibrada sobre o assunto? Estas e
outras perguntas precisam ser analisadas com discernimento e equilíbrio para
evitarmos os extremos e não cairmos nos fundamentalismos tão presentes nos
nossos dias. Como cristãos precisamos compreender que o ser humano jamais deixará
de dar uma resposta às questões que ele mesmo formula em decorrência de sua
realidade, em decorrência do seu estar no mundo. Isto deve nos levar ao
amadurecimento e não em insegurança.
Se olharmos atentamente para a
construção social e suas representações, iremos encontrar um corpo em constantes
mudanças e vinculado ao campo da imagem, do desejo, do prazer, da liberdade, da
repressão, ou seja, são inúmeras as possibilidades de descrevermos o corpo
através das culturas. É sobre esse corpo em ética, que envolto num emaranhado
de construções ideológicas, culturais, teológicas, antropológicas e simbólicas
que iremos trilhar. O ponto de partida sempre será o referencial
bíblico-teológico para compreendermos um pouco mais sobre este tema tão
complexo e que precisa ser debatido nos círculos acadêmicos e vivenciado no
corpo de Cristo.
I – A ÉTICA DO CORPO EM UMA SOCIEDADE DE
CONSUMO
No Brasil, a televisão e os demais meios de
comunicação, através do discurso publicitário exercem grande pressão para que
consumamos. A necessidade de adquirir mercadorias, objetos e serviços são no
contexto atual produzida com grande força através da relação existente entre as
mídias e a sociedade.
Segundo Pierre Bourdieu (1998), o
conceito de campo poderia ser entendido como um espaço de produção de relações
sociais objetivas, considerando as interações instituídas entre os atores
envolvidos neste processo. De acordo com Bourdieu:
“O campo de produção
simbólica é um microcosmo da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os
seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nessa medida) que os
produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção” (p.
12).
Sendo assim, podemos observar que o
consumismo tem gerado grandes catástrofes na sociedade. As consequências deste
comportamento vão desde o crescimento vertiginoso da banalização da violência e
a vulgarização do corpo como instrumento puramente hedonista. Muitos consomem
drogas porque na sociedade da “produção imediata e de resultados”, é a
alternativa que encontram para buscarem outro sentido de vida. Estamos vivendo
sob a síndrome da poluição, da extinção, da escassez, da miséria, da fome, das
grandes catástrofes, que de naturais não têm nada, mas são em grande parte,
resultado da banalização da vida pelo ser humano em todas as suas representações.
O homem e a mulher contemporâneos precisam
deixar de se tornarem “as pessoas das conquistas e vitórias”, para sermos
transformados nas pessoas das re-conquistas. Digo isto, com o intuito de
resgatarmos o amor e o cuidado com a vida que se tem perdido gradativamente
atualmente. Evidentemente que encontraremos coisas relevantes nesta sociedade
de consumo. Por exemplo: os avanços da biologia e da medicina tem nos permitido
salvar e possibilitar muitas esperanças em doenças que anteriormente não tinham
cura. Na sociedade em estamos inseridos, tem-se perdido o sentido de
coletividade em detrimento da individualidade que são orientadas pelos ditames
do mercado. Se tivermos a mente de Cristo e discernimento para lermos o mundo
com as lentes de Cristo, não deixaremos que os outros ditem as regras de
mercado para nós.
Na ética do Reino de Deus, o corpo
precisa ser valorizado e cuidado com responsabilidade e para isto precisamos
estar fundamentados nos princípios bíblicos. Desta forma, o corpo na
perspectiva bíblica é compreendido com uma unidade constitutiva do ser humano
onde ele se manifesta. Por outro lado, o corpo não pode ter uma primazia sobre
o espírito. No mundo Antigo se valorizava somente o espírito e desprezava-se o
corpo. Hoje, corremos o risco de ver o contrário acontecer. Há pessoas que se
tornaram escravas do corpo. O consumismo exacerbado tem convencido as pessoas
que o mais importante é ser bonito fisicamente, esbelto, magro. Muitos estão convencidos de que, se não
estiverem de acordo com esses padrões, não serão felizes. Entretanto, Deus
seria injusto se fizesse com que a felicidade dependesse da cor da pele, do biotipo
do corpo, da ondulação do cabelo. O corpo não é um fim em si mesmo, mas
um meio para nos expressarmos.
II – UM DIÁLOGO ENTRE O CORPO E A TEOLOGIA
CRISTÃ
Numa abordagem bíblico-teológica, o
corpo é o templo onde habita o Espírito de Deus (1 Co 6:19,20). Na visão Paulina embora o corpo seja mortal Deus lhe confere a vida por meio de seu
Espírito, que nele habita (Rm 8,11). Precisamos fazer uma aproximação
respeitosa e madura para que possamos compreender um pouco mais o corpo em sua
dimensão mais abrangente, bem como uma reflexão sobre o que estamos fazendo com
o corpo e qual o destino que estamos dando a ele em nossos dias.
A
doutrina cristã sempre valorizou o corpo humano por entender que ele é bom.
Desde os primeiros séculos da era cristã, os Pais da Igreja tiveram de combater
a doutrina maniqueísta, que considerava a existência de dois deuses: um do bem
e outro do mal, sendo que tudo que era material era entendido como obra do deus
mau. Dessa forma, o corpo, por ser matéria, era desprezado. Entretanto, muitos
Pais da igreja devido à influência grega acabaram se tornando cativos a esta
estrutura antropológica em que estavam inseridos. Eles assumiram a concepção
“dual” do ser humano, a ponto de torná-la a versão oficial da antropologia
cristã. Modificando os significados e as relações entre corpo e alma, o corpo
veio a ser entendido como criação e imagem de Deus, e bem como lugar da
encarnação de Deus, não como fonte do mal e destinado ao nada, mas como algo
bom, destinado à ressurreição. Porém, é que ainda assim encontramos na história
da igreja uma tensão nesta questão teológica até os dias de hoje.
Para uma concepção adequada sobre a
relação do corpo com a teologia, se faz necessário um aprofundamento nos textos
sagrados para evitarmos o dualismo nas interpretações dos textos bíblicos que
tratam do corpo. O grande equívoco da teologia cristã ao longo de sua história
foi a de realizar sua chave hermenêutica numa perspectiva helênica e não
judaica. Esta visão interpretativa gerou e ainda gera muita confusão no seio da
igreja em diversos temas da fé cristã, mas principalmente sobre a antropologia
bíblica.
Porém, se encararmos a antropologia
bíblica a partir da concepção teológica da encarnação, não teremos dificuldades
na compreensão e nem na abordagem do corpo na cosmovisão cristã. O corpo é tão
importante nas escrituras que o próprio filho de Deus assumiu a nossa carne e
habitou entre nós. É através do nosso corpo que nos relacionamos com os outros
e com toda a ordem criada. Não somos como máquinas que não tem sentimentos.
Na pessoa humana o corpo é um
reflexo da vida interior, tanto que expressa o cansaço do espírito, a depressão
da alma ou a alegria de viver. Para o cristão, matéria e espírito são duas
dimensões do ser. O homem todo é obra boa de Deus, é um ser racional que deve
valorizar todas as atividades: físicas, racionais, psicológicas e espirituais. Na
palavra de Deus também encontramos a grandeza do nosso corpo. Jesus disse aos
apóstolos que “se alguém me ama, meu Pai
o amará, viremos a ele e faremos nele nossa morada” (João 14,23).
Segundo
Libânio “o diálogo entre as diversas
áreas do conhecimento, além de combater a arrogância, a prepotência e a
hegemonia de determinada ciência como única possuidora da verdade, aumenta a
percepção da comunidade científica sobre a vida em suas múltiplas e sutis
interconexões e faz crescer a sensibilidade ética de defesa e promoção da vida,
em todos os níveis da atividade humana”. (1999. p. 41-42)
Lancemos, portanto, um olhar
sobre o corpo numa perspectiva mais ampla: como algo fundamental para a
realização humana e para o sentido da própria existência. Que tenhamos na encarnação
do Cristo um olhar holístico e não mais fragmentado do corpo em nossa teologia cristã.
III – O DESEJO DE DEUS PARA SAÚDE HUMANA
Para início de conversa, precisamos
entender que somos ensinados nas escrituras que devemos cuidar do nosso corpo e
amá-lo. “Porque ninguém jamais odiou a
própria carne; antes, a alimenta e dela cuida” (Ef 5:29). Se o Espírito
Santo vive dentro de nós, como de fato cremos, então devemos cuidar deste
“templo” com o mesmo respeito e reverência com que os israelitas cuidavam do
templo que Deus lhes mandou construir.
Nas
escrituras encontramos um cuidado de Deus para com seu povo em relação a saúde.
Na torá identificamos diversas leis sobre alimentação, higiene e saúde.
Principalmente no livro de Levíticos. Identificamos ali que Deus deseja que
seus filhos e filhas cuidem não apenas do aspecto espiritual, mas também
biopsicossocial, ou seja, de forma integral. Textos como: “Amado, desejo que te vá bem em todas as coisas, e que tenhas saúde,
assim como bem vai a tua alma". (III João 2). Há uma infinidade de
textos que apresentam um Deus que se preocupa com os seus e com a saúde do seu
povo.
Infelizmente
no nosso meio evangélico, o ato de cuidar do corpo se limita apenas a algumas
práticas comportamentais e de cunho moral somente. Ela se resume basicamente a
não fumar e nem usar bebidas alcoólicas. Obviamente que tais práticas trazem
malefícios para a saúde. Mas o cuidado com o corpo não pode se resumir apenas
nisto. Pois, a visão da Bíblia em relação a isto é bem mais ampla e integral.
Soa estranho aqueles que querem execrar o corpo humano e num acesso de pseudo-espiritualidade, alegarem que o crente deve somente cuidar de sua alma. Certo é que o apóstolo Paulo afirmou: “Porque o exercício corporal para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de vir” (1Tm 4.8). Mas o mesmo Paulo citou os esportes praticados no mundo greco-romano para ilustrar a vida cristã (1 Co 9.24-27). Paulo não disse em 1 Tm 4.8 de que o exercício corporal para nada aproveita, sempre há algum proveito para a saúde corporal o realizar atividades físicas com moderação e regularidade.
Soa estranho aqueles que querem execrar o corpo humano e num acesso de pseudo-espiritualidade, alegarem que o crente deve somente cuidar de sua alma. Certo é que o apóstolo Paulo afirmou: “Porque o exercício corporal para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de vir” (1Tm 4.8). Mas o mesmo Paulo citou os esportes praticados no mundo greco-romano para ilustrar a vida cristã (1 Co 9.24-27). Paulo não disse em 1 Tm 4.8 de que o exercício corporal para nada aproveita, sempre há algum proveito para a saúde corporal o realizar atividades físicas com moderação e regularidade.
A escritura diz: “Portanto,
quer comais, quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a
glória de Deus” (1
Co 10.31). O cuidar do corpo por meio da atividade física é algo que glorifica
ao Senhor. Quando Paulo em Romanos 12.1 diz que devemos apresentar nossos
corpos a Deus como sacrifício vivo, santo e agradável, não está falando de
alguma espécie de substância espiritual. Ele está falando de algo material,
tangível como bem deixa transparecer o termo grego soma. Seja um
cristão autêntico, tenha qualidade de vida em Jesus não só para sua alma, mas
também para seu corpo.
BIBLIOGRAFIA
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Paulinas, 1999.
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São Paulo: Paulus, 1989.
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Simbolismo do corpo na Bíblia / Silvia Schroer e Thomas Staubli; (tradução
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História).
SUNG, Jung Mo. Conversando sobre ética e sociedade. 14ª ed.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.
Pr. Marco Antônio Carvalho
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